Esta é a segunda parte de uma série de cinco partes. A primeira parte, a introdução, está aqui. A terceira parte, sobre a proibição de anúncios de vigilância, está aqui.

O jornalismo está em apuros. Não é só os fechamentos de redações - também são os ataques físicos e ideológicos nos jornalistas. Os sites de notícias são repletos de anúncios, mas mais da metade do dinheiro que esses anúncios geram é desviado por empresas de tecnologia de anúncios, com a maior parte indo para apenas duas empresas, Google e Meta, cujo duopólio de tecnologia de anúncios lhes permitiu abocanhar uma parcela cada vez maior da receita gerada por anúncios colocados ao lado de conteúdo de notícias.

Uma vez, as plataformas de tecnologia prometeram que a "publicidade comportamental" seria uma benção tanto para as empresas de mídia quanto para seus parceiros de tecnologia. Em vez de pagar vendedores comissionados para convencer as empresas a colocar anúncios com base na reputação e número de leitores de uma publicação, as empresas de mídia veiculariam anúncios colocados pelos vencedores de uma série de leilões de fração de segundo, cada vez que um usuário mudasse de uma página para outra.

Esses leilões ofereceriam o usuário, não o conteúdo, a uma série de licitantes representando diferentes anunciantes: "Quanto me ofereça pelo direito de mostrar um anúncio para um homem deprimido, de 19 anos, do Instituto de Arte da Cidade de Kansas, que recentemente procurou empréstimo para carro e também comprou absorventes para incontinência?" Em um piscar de olhos, cada vaga de anúncio na página seria preenchido com anúncios comprados com um prêmio por anunciantes ansiosos para alcançar esse usuário específico. E esse usuário vai gostar! Eles ficarão gratos pelo processo e por todas as propagandas "altamente relevantes" que botou bem na sua cara.

Tal arranjo tem várias partes envolvidas. A "pilha de tecnologia de anúncios" inclui:

  • Uma "plataforma do lado da oferta" (SSP): O SSP atua como o corretor do editor, trazendo cada usuário ao mercado e vendendo sua atenção com base em seus traços "comportamentais";
  • Uma "plataforma do lado da demanda" (DSP): O DSP representa os anunciantes, consultando uma lista de desejos de traços comportamentais específicos que cada anunciante deseja segmentar;
  • Um mercado: o mercado solicita lances em nome do SSP, coleta lances de DSPs e, em seguida, consuma a transação entregando o anúncio do licitante vencedor ao SSP para ser posto bem na frente do cara do usuário.

Há muitas empresas que oferecem um ou outro desses serviços, mas as duas maiores empresas de tecnologia de anúncios - Meta e Google - oferecem os três.

Isso significa que há milhões de transações todos os dias em que o Google (representando um editor) informa ao Google (representando o mercado) sobre uma vaga de anúncio para venda; e aí o Google (que representa muitos anunciantes diferentes) faz lances nessa vaga de anúncios. Uma vez consumada a venda, o Google ganha três taxas diferentes: uma por servir como agente do vendedor, outra por servir como agente do comprador e uma terceira pelo uso de seu mercado.

Além disso, o Google também é um grande editor, oferecendo milhões de vagas de anúncios para venda no YouTube e em outros lugares. É também uma agência de publicidade, comprando milhões desses mesmos anúncios em nome de seus clientes empresariais.

Não há paralelos para isso no mundo real: imagine se os donos da Bolsa de Valores de São Paulo fossem também uma corretora  e um banco de subscrição - além de possuir vários dos maiores negócios da bolsa e comprar enormes quantidades de ações em sua própria bolsa.

Imagine se um corretor de imóveis representasse tanto o comprador quanto o vendedor, e também fosse dono do serviço de listagem, e também comprasse e vendesse milhões de casas, licitando contra seus próprios compradores-clientes e competindo por vendas com seus próprios vendedores-clientes.

Imagine se um advogado de divórcio representasse ambas as partes, e também fosse o juiz no tribunal de divórcio, e também estivesse tentando aproximar as duas partes logo mais em um serviço de namoro.

Possuir o mercado permite que o Google dê preferência a seus próprios corretores, tanto do lado do anunciante quanto do editor. Estar em ambos os lados da transação permite que o Google ajuste os lances e as aceitações para maximizar sua própria receita, manipulando os leilões para cobrar mais dos anunciantes e pagar menos aos editores.

Não é apenas o Google: a Meta também opera um sistema dominante e completo de anúncios, intimamente conectado a suas múltiplas plataformas, incluindo Facebook e Instagram, onde compete com os editores para os quais intermedia anúncios. Assim como o Google, a Meta representa compradores  e vendedores em um mercado que controla e frauda a licitação para se beneficiar às custas de ambos.

Pior ainda, Google e Meta supostamente estão em conluio, criando um sistema de desvantagens quase inescapáveis, onde vendedores e compradores não tenham a quem recorrer.

O mercado de tecnologia de anúncios não é um mercado: é um Fraude de Loja Grade onde todos os participantes visíveis ao editor façam parte do jogo: o agente do comprador, o agente do vendedor e o mercado onde eles trazem o produto do editor são todos administrados por uma única empresa, ou por duas empresas que secretamente concordaram em não competir. Se você não consegue identificar o pateta na mesa de pôquer... é você.

Foi assim que a tecnologia de anúncios cresceu para consumir mais da metade de todo o dinheiro de anúncios gasto. Fraude.

Isso precisa ser corrigido. É realmente ilegal - manipulação de mercado - é o tipo de coisa que os agentes antitruste frequentemente investigam. E estão.

Mas mesmo que o duopólio da tecnologia de anúncios seja mandado a parar sua conduta mais obviamente ilegal, isso não será suficiente. Não basta fazer as empresas jurarem que não usarão seu poder como agentes de compradores e vendedores em seu próprio mercado para enriquecer às custas das editoras.

Pergunte a qualquer advogado. Pergunte a qualquer juiz. Pergunte a qualquer fã de esportes. A única maneira de resolver um conflito de interesses como esse é eliminá-lo. O árbitro não pode ser dono do time. A equipa não pode ser dona do árbitro. O juiz não pode ouvir o caso do filho. Seu advogado não pode trabalhar para seu oponente.

E uma empresa de tecnologia de anúncios não pode ser o mercado, o agente do comprador e o agente do vendedor.

É aí que entra a lei AMERICA. Apresentado pelo senador Mike Lee [R-UT], o projeto de lei é verdadeiramente bipartidário, contando entre seus copatrocinadores tanto o senador Ted Cruz [R-TX] e a senadora Elizabeth Warren [D-MA], e muitos outros senadores poderosos de ambos os partidos principais.

De acordo com as provisões da Lei AMERICA, empresas como Google e Meta seriam forçadas a vender ou encerrar suas plataformas do lado da demanda (comprador) e suas plataformas do lado da oferta (vendedor). Nenhuma grande empresa (processando US$ 20 bilhões por ano ou mais em transações de anúncios) que operasse uma bolsa de anúncios teria permissão para representar os compradores e vendedores que usaram essa bolsa. Da mesma forma, nenhuma plataforma do lado do comprador poderia operar uma plataforma do lado do vendedor, e vice-versa.

Para empresas menores - aquelas que transacionam entre US$ 5 bilhões e US$ 20 bilhões por ano em vendas de anúncios - a Lei AMERICA estabelece o dever de "agir no melhor interesse de seus clientes, inclusive fazendo a melhor execução para lances em anúncios", e manter sistemas transparentes e auditáveis para que compradores e vendedores possam confirmar que esse é o caso. Empresas que representam compradores e vendedores precisariam de barreira de proteção entre os dois lados do negócio, com ainda penalidades por conflitos de interesse.

Esse tipo de regra já foi alicerce da regulação da concorrência americana. Quando banqueiros grandes demais para falir e barões ferroviários grandes demais para serem punidos levaram a América à beira da ruína, os reguladores impuseram "separação estrutural" nessas empresas de plataforma, proibindo-as de competir com seus próprios clientes.

Isso significava que as ferroviários não podiam competir com as empresas de frete que enviavam mercadorias em suas ferrovias. Isso significava que os bancos não podiam ter negócios que competissem com as empresas para as quais emprestavam dinheiro. As ferrovias e os bancos poderiam jurar que nunca iriam agir primeiro no seu próprio benefício, mas a tentação de fazê-lo é forte, e a chance de ser pego é baixa, e a consequência é a conversão da indústria americana em uma economia planejada administrada por um cabal de diretores-presidentes amigos.

Durante anos, o duopólio de tecnologia de anúncios jurou que nunca cederia à tentação de manipular o jogo a seu favor. Mas não conseguiam se evitar. Isso não é surpreendente: as regras de conflito de interesses não existem apenas para impedir os desonestos, elas existem para afastar os honestos, mas falíveis, da tentação. E Quem entre nós pode alegar ser infalível?

Para a indústria de notícias, a Lei AMERICA é uma oportunidade incrível. Simplesmente mudar a distribuição de dólares de anúncios - reduzindo a participação destinada às plataformas para uns modestos 10%, digamos - poderia dar aos editores um aumento de 20% nas receitas de anúncios, enquanto reduziria o custo da publicidade em 20%.

Isso é bom para todos. Dar aos editores sua parcela justa da receita de anúncios significa que eles não terão que encher seus sites com anúncios que obscurecem o conteúdo. Reduzir os custos para os anunciantes significa que os produtos podem ser vendidos mais baratos. 

A Lei AMERICA afirma algo que todos entendem nos seus íntimos: você pode ser dono da liga, pode ser dono de um time, ou pode arbitrar o jogo - mas você não pode fazer os três e ainda fazer um jogo honesto.