Esta publicação se divide em duas partes. A Parte I analisa a minuta da Convenção da ONU sobre Cibercrime e suas possíveis implicações para os direitos LGBTQ+. A Parte II apresenta uma visão mais detalhada de como as leis de cibercrime podem impactar especificamente a comunidade LGBTQ+ e os ativistas na região do Oriente Médio e Norte da África (OMNA).

A EFF tem expressado preocupações de forma consistente sobre o uso indevido das leis de combate ao crime cibernético em todo o mundo, em especial seu impacto sobre comunidades marginalizadas e vulneráveis — principalmente pessoas LGBTQ+Estas leis, promulgadas com amplo escopo e redação vaga, também têm sido usadas como uma arma contra pesquisadores de segurançaartistasjornalistasdefensores dos direitos humanos.

Com o avanço das negociações com relação à polêmica minuta da Convenção sobre Cibercrime da ONU, os países se veem com uma responsabilidade imensa. A potencial expansão dos poderes de vigilância transfronteiriça é alarmante. Algumas nações podem explorar esses poderes para investigar atos que classificam de forma controversa como crimes com base em julgamentos morais subjetivos, em vez de padrões universalmente aceitos. Tais poderes podem levar à vigilância de atos simples como o compartilhamento de conteúdo online, colocando em risco grupos vulneráveis como a comunidade LGBTQ+. A ONU deve garantir que estas amplas autorizações não sejam legitimadas. Sem controle, a primeira minuta e suas emendas subsequentes podem conceder involuntariamente amplos poderes de vigilância investigativa e de ações criminais além das fronteiras, que correm o risco de minar os direitos humanos tanto no cenário doméstico quando internacional.

O Artigo 5o sobre Direitos Humanos deve ser fortalecido

Até o momento, isso não parece bom para os direitos humanos. Uma proposta de emenda defendida pelo Uruguai e apoiada por 50 nações com o objetivo de reforçar os direitos humanos no Artigo 5o com a integração de gênero (ver minutos 01:15) encontrou forte oposição. Países como Malásia, Rússia, Síria, Nigéria e Senegal se opuseram diretamente a ela. Enquanto isso, países como China, Arábia Saudita, Egito e Iraque optaram por apoiar o Artigo 5o, conforme escrito na minuta inicial, que não reconhece a integração de gênero. 

Além disso, nada mudou nas sessões de negociação subsequentes nos bastidores destinadas a resolver as emendas a este artigo — o Japão, presidente do grupo informal, informou que o “melhor caminho a seguir seria respeitar o artigo 5º original da minuta inicial do presidente [do Comitê Ad Hoc] sem emendas”. Os resultados dessas deliberações informais secretas foram posteriormente apresentados na sessão principal. A resposta do Uruguai foi clara (ver minutos 01:16): Integrar essa linguagem [gênero, grupos vulneráveis e salvaguardas do estado de direito] não é uma ameaça nem uma imposição; ela reflete com precisão as realidades contemporâneas, garantindo que a Convenção seja atual e alinhada com as realidades correntes.

Em contraste, o Preâmbulo, os Artigos 1o e 55 da Carta das Nações Unidas apoiam a igualdade de gênero e os instrumentos internacionais subsequentes, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), obrigam ainda os países a combater ativamente todas as formas de discriminação de gênero e promover a igualdade de gênero. Ainda, a Resolução da Assembleia Geral da ONU (A/RES/77/211) mais recente sobre privacidade na era digital reconhece o direito à privacidade como forma de prevenir a violência de gênero e incentiva todas as partes interessadas relevantes a integrar uma perspectiva de gênero no desenvolvimento e adoção de tecnologias digitais.

Como Derechos Digitales e a APC disseram aos Estados Membros da ONU, “é essencial que os instrumentos internacionais integrem o gênero para garantir que as normas contribuam para o cumprimento dos direitos humanos e a igualdade de gênero”. AlSur ecoou esta recomendação “para atender às necessidades específicas de pessoas de diversas orientações sexuais e expressões de gênero”.

Reduzir as brechas no capítulo de cooperação internacional (Artigos 3o e 35)

Ao final da sessão de negociação do tratado em agosto, o Canadá afirmou (ver minutos 01:01) que o escopo da convenção permite que cada país defina o que constitui um “crime” ou “crime grave” em seus próprios termos, potencialmente levando a definições excessivamente amplas que podem ser abusadas. As preocupações do Canadá sobre o tratado são especialmente verdadeiras ao examinar casos da vida real. Veja, por exemplo, o caso da Human Rights Watch de “Yamen”, um jovem gay da Jordânia. Yamen, depois de ser atacado online, procurou as autoridades de seu país, esperando justiça. No entanto, conforme a própria lei do cibercrime da qual ele buscava proteção, ele se viu acusado e condenado por “prostituição online”.

O escopo abrangente do Tratado, conforme destacado na “minuta inicial” e posteriormente no conjunto de emendas, apresenta um erro significativo. O capítulo sobre vigilância doméstica na minuta endossa a coleta de evidências com medidas de vigilância muito intrusivas para delitos criminais, conforme definido na legislação nacional de cada país. E o capítulo de cooperação internacional (também chamado de capítulo de “assistência de espionagem cruzada”) dá aos países um grau inquietante de liberdade, permitindo-lhes cooperar com base em suas leis penais nacionais ao coletar evidências eletrônicas para crimes puníveis com mais de três anos (resultados das negociações informais) ou quatro anos (como na minuta inicial). 

Em resumo, a minuta do texto permite que os países prestem ajuda mútua em espionagem, mas o faz com base na lei penal de cada país, em vez de um conjunto limitado de crimes cibernéticos, conforme definido pela Convenção. Isso significa que o país que solicita a assistência pode determinar individualmente o que rotula como “crimes” e, posteriormente, solicitar a outro país que ajude a implantar suas medidas de vigilância abrangentes para a colheita de provas para a maioria dos crimes. Tal estrutura indevidamente dá luz verde às nações para compartilhar dados de vigilância sobre ações ou comportamentos que possam ser intrinsecamente protegidos pelo direito internacional dos direitos humanos.

Por exemplo, em alguns países onde as expressões online LGBTQ+, incluindo o compartilhamento de conteúdo considerado “imoral”, são criminalizadas erroneamente, as disposições da minuta de tratado podem ser mal utilizadas para permitir ainda mais medidas de vigilância doméstica direcionadas a essas comunidades. Também pode permitir que um estado ajude outro a rastrear o paradeiro de uma pessoa LGBTQ+ quando esta estiver viajando para o exterior. Alguns países podem optar por exigir a dupla criminalização, porém, muitos que têm leis semelhantes ou são amigos desse governo, estarão dispostos a cooperar. É isso que não é aceitável. Os Estados não devem apenas olhar para si mesmos, mas para o quadro mais amplo do que estão autorizando sob abrigo da ONU.

O capítulo da cooperação internacional apresenta outro problema central. Seu escopo depende excessivamente da gravidade das penalidades – especificamente, três ou quatro anos de prisão – como a principal métrica para permitir que um país solicite assistência de outro em esforços de vigilância. Em inúmeras leis que criminalizam pessoas LGBTQ+ apenas por sua identidade, ou por conteúdo considerado “imoral”, muitas vezes as penas são de quatro anos ou mais e os atos são erroneamente considerados “crimes graves”. Isso representa uma ameaça substancial, especialmente quando tais critérios podem ditar a colaboração e a vigilância internacionais. 

Em algumas jurisdições, atos que são considerados delitos menores poderiam ser elevados a crimes graves em outras, criando um desequilíbrio na intensidade da vigilância aplicada a essas supostas “infrações”. Este erro de concepção pode levar à “acusação por crime mais grave” – em que as autoridades podem ser motivadas a amplificar as acusações para atender aos critérios de “4 anos/crime grave”. Embora esse limite seja uma melhoria em comparação com um mandato aberto para qualquer crime, sua ambiguidade corre o risco de ser explorada. Além disso, o aumento resultante das solicitações pode onerar ainda mais um sistema já sobrecarregado de tratados de mútua assistência (MLAT), exacerbando assim os desafios de recursos existentes.

Refinar o tratado proposto para se concentrar exclusivamente nos principais crimes cibernéticos, conforme explicitamente detalhado, não é apenas uma abordagem construtiva – pode ser o único caminho para garantir a aprovação de vários parlamentos nacionais. É assim que a Human Rights Watch, a ARTICLE 19, a EFF, a Privacy International e muitos outros pediram que a convenção proposta exclua explicitamente as disposições de vigilância doméstica e cooperação transfronteiriça relativas a crimes cibernéticos não essenciais, garantindo que as nações não ofereçam o fundamento legal amparado pela ONU para legitimar a colaboração para a coleta de evidências para a investigação desses crimes arbitrários – muitos dos quais não são uma conduta inerentemente criminosa, mas são até mesmo leis discriminatórias que visam indivíduos LGBTQ+ meras expressões de identidade de gênero, orientação sexual ou crenças. 

Imagine uma nação ajudando uma outra a espionar o uso da internet por pessoas LGTBQ+, identificando quais sites visitam. Conversas pessoais em tempo real são interceptadas. Até mesmo o deslocamento normal de uma pessoa LGTBQ+ é acompanhado. Se as autoridades em certos países visam desproporcionalmente pessoas LGBTQ+, vigiando-as apenas por expressar suas identidades autênticas – porque tais expressões são erroneamente categorizadas como “crimes graves” com penas de mais de três anos de prisão – isso expõe de forma ostensiva uma injustiça profundamente enraizada e dá origem a profundas preocupações. Não se trata apenas de invadir a privacidade de alguém. Trata-se de usar tecnologia intrusiva para discriminar de foma profunda e injusta as pessoas LGBTQ+, colocando sua segurança e liberdade em grave risco.

Na verdade, esta não é uma preocupação abstrata, mas uma realidade que acontece repetidamente em vários países. Por exemplo, o Relatório Mundial da Human Rights Watch de 2022, juntamente com as descobertas da Derechos Digitales sobre as leis de crimes cibernéticos usadas contra comunidades LGBTQ+, apresenta evidências de que leis vagas de crimes cibernéticos são usadas amiúde para amordaçar a dissidência; os grupos marginalizados como mulheres e LGBTQIA+ são os mais afetados.

As leis de vigilância doméstica e o compartilhamento indiscriminado de dados pessoais exacerbam o impacto negativo de tais ferramentas quando estão nas mãos das autoridades constituídas. É frequente a manipulação das leis para acumular “provas” – não apenas para processar indivíduos com base em relacionamentos do mesmo sexo, mas também para invocar “cláusulas morais” arcaicas e repressoras. Essa sinergia amedrontadora não apenas facilita a hostilidade; ela amplifica os riscos para a comunidade LGBTQ+ e para os ativistas de apoio. Ceder a essas concessões em qualquer convenção internacional seria prejudicial e marcaria um perigoso revés para os direitos humanos. 

Aceitar um escopo mais amplo seria nada menos que catastrófico – especialmente para comunidades LGBTQ+ já vulneráveis em todo o mundo. Há muitos outros aspectos do Tratado que disparam sinais de alerta. Fique atento ao nosso blog nos próximos dias, à medida que nos aprofundamos nessas preocupações urgentes.

Nossa segunda publicação mapeará as recentes leis de cibercrime na região OMNA em relação aos padrões estabelecidos no âmbito do proposto Tratado de Cibercrime da ONU. Fique atento.